terça-feira, 12 de novembro de 2013

O Bode Expiatório



Francisco Barroso

Está tudo do avesso. O mundo está ao contrário e, mesmo sem conhecermos as causas profundas, todos temos essa intuição, essa perceção. A evolução moral, como a pessoal, é lenta e tem por vezes recuos significativos. Em termos coletivos estamos num desses períodos seguramente.
É de todos conhecido o facto de nas sociedades primitivas o valor ou a importância residir no coletivo. Era o grupo que era importante, não o indivíduo, a sobrevivência da tribo ou grupo dependia disso. A pessoa, nesses tempos, não tinha qualquer valor além do grupo ou da comunidade em que estava inserida. Aliás, quando as coisas corriam mal, o grupo para apaziguar a ira das divindades, que naqueles tempos eram tão cruéis quanto os homens, pois que criados à sua imagem e semelhança, não tinham qualquer pudor em sacrificar-lhe um dos seus.
Se recuarem à mitologia grega, que é já uma coisa recente, lembrarão que Homero e Hesíodo atribuíram aos deuses, tudo aquilo que entre os homens é repreensível e sem decoro: roubo, adultério e enganos recíprocos. E porventura em território mais conhecido (a Bíblia) lembrarão que no tempo da Páscoa os judeus se dirigiam a Jerusalém para no Templo oferecer sacrifícios a Iavé. Uma das cerimónias consistia em largar no deserto um bode para o qual o Sumo-Sacerdote migrara os pecados do povo com a função de ali os expiar: o bode expiatório.
É fácil de ver que os tempos não têm sido fáceis, mas tem havido evolução, e como ensina o filósofo José António Marina: o uso racional da inteligência, que se materializa na procura de evidências partilhadas, intersubjetivas, que se empenha numa corroboração incessante daquilo que pensa, mediante a critica, o debate, a prova, melhorou a nossa convivência, libertando-nos da tirania da força e instaurando a orbe da dignidade humana.
O surgimento da ética como possibilidade que a inteligência tem de quebrar a lógica do mundo, que é a lei da selva, o reforço do direito com a consagração dos direitos de personalidade, do principio da igualdade, que permitiu o surgimento dos regimes democráticos, que assentam no princípio da responsabilidade pessoal e nos levaram a um patamar civilizacional que pensámos indestrutível…todavia e de repente: ai, ai, ai, que isto assim não pode ser…parece que está tudo a ruir!!!
O que nos está a acontecer é um terramoto moral. O capitalismo, com os seus fetiches hedonistas, levou-nos a níveis de consumismo e individualismo insustentáveis, com dinheiro fácil, muito dinheiro, para termos tudo do bom e do melhor. Pensávamos que só assim merecíamos a aceitação do outro. Sacrificámos tantas coisas para ter mais dinheiro. Um emprego não chegava, arranjavam-se dois. Era preciso trocar de carro, uma casa maior, uma outra casa de férias… acabámos por nos vender por um prato de lentilhas, tal como Esaú vendeu a sua primogenitura e, no entanto, vivemos hoje tempos de amargura.
E os políticos que no plano simbólico e institucional representam o bonus pater família coletivo, que
deviam garantir a justiça, a equidade e o equilíbrio entraram eles próprios em desvario total. Para manter o poder ou para o alcançar tudo se tornou válido. Sustentam a ação num discurso totalmente esquizofrénico, um discurso de feirantes, a vender ilusões quando na oposição e mal alcançam o poder, um discurso inverso, que sustentam com a alta responsabilidade de estadistas, permitindo-se subverter os mais elementares princípios da confiança e da boa fé.
Como é que um conjunto de cidadãos que se propõem governar um país o leva a uma situação de ruína, por dividas colossais que se vão acumulando ano após ano? Por ação, porque para ganhar eleições gastam rios de dinheiro em obras de fachada, muitas quase inúteis só para pagar favores às grandes empresas que os sustentam. Por omissão, por deixarem a banca em roda livre a criar uma riqueza virtual até onde ela própria achou possível.
Foi a alta finança que com a sua ganância infinita e os Estados com a sua inoperância que causaram este terramoto a que deram o pomposo nome de divida soberana, de que não há responsáveis. Os responsáveis não são os banqueiros que fraudulentamente nos enganaram a todos nem os órgãos do Estado que tinham o dever de os supervisionar e não o fizeram. Os responsáveis somos nós. Todos nós que temos que a pagar, filhos e netos…
Ora, é este o aspeto mais relevante do problema. É que apesar da Constituição, de imensas leis em vigor e de tribunais instalados, o meio encontrado como o mais adequado foi o da subversão do princípio de responsabilidade individual. Sendo de grande melindre incomodar os sábios políticos (que raramente têm dúvidas e nunca se enganam) e os poderosos, ataca-se quem poucos ou nenhuns meios tem de defesa, através da conversão (perversão) da responsabilidade individual em responsabilidade coletiva.
Como já se percebeu, o direito já de pouco nos vale. O país está atulhado de leis. Nunca houve tantas como agora e como é que nos sentimos? Como um bode expiatório, inelutavelmente condenados.
O que é que precisamos? De uma moral e de uma ética forte, em que seja natural o respeito pelo outro. Em que o outro seja olhado não como uma mera possibilidade de nosso enriquecimento material, mas antes como possibilidade do nosso crescimento pessoal e interior. Nós não viemos ao mundo ser ricos ou pobres, nós viemos ao mundo, antes de tudo para ser felizes…e esquecemo-lo tantas vezes.
O homem é um ser cheio de possibilidades, mas tão frágil, inseguro e tão perdido nas suas ambições. Afinal de nos servem a Constituição, os códigos, os contratos se não se houver respeito, se não houver palavra?
Numa situação de desamparo como esta deixo-vos com salmo 22 de David: Não te afastes de mim, pois a angústia está perto, e não há quem ajude. Essa é que é essa…
 novembro 2013.

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