domingo, 2 de novembro de 2008

A FORNEIRA - Para todas as Avós de Cebola!

A FORNEIRA
Contributo à vida e à memória de todas as Avós de Cebola (Mulheres e Mães)

Recuo o máximo nas memórias em que consigo vislumbrar os ambientes, identificar os cheiros, distinguir os sons, sentir o chão que piso e em que consigo, ainda, despertar os sentidos, esses inseparáveis companheiros, que me acompanham desde que a consciência despertou em mim... e vejo, ouço, cheiro e sinto!

Os primeiros raios de claridade escapam pela nesga da porta entreaberta e iluminam fugazmente os rostos. Aqui e ali, por entre rolos de pó, alguns fios de luz escorrem dos orifícios das lajes de xisto do telhado, negras da fuligem do fumo. Uma ténue luminosidade interior denuncia um movimento de corpos cadenciado. O bater seco, abafado e sincopado das mãos na massa, à vez, entrecortado por estridentes palmadas, testando a consistência da mistura, confere ao ambiente um colorido sonoro que a luz ainda não despertou em tudo o que se move. Um punhado de farinha emboleira tudo em redor e faz aumentar a dança do pó que se escapa por entre os fios de luz. E, de novo, o bater seco, abafado e sincopado das mãos na massa. O cheiro azedo da massa fintada com o da farinha misturam-se no ar com as baforadas mornas que exalam da broa quente e ainda fumegante acabada de sair do forno. É coisa que desperta o fraco apetite matinal a qualquer “pisco”.

Naquela manhã, tinham saído de casa muito cedo, um rapazito franzino e a avó. Ele estugou-se a beber o leite, mais do que o habitual, esperando ouvir as palavras mágicas que os haviam de por a caminho: - Vamos filho!
Percorreram, nos passitos ligeiros dos seus tenros anos, a estrada da Ponte, em direcção à Amoreira. O rasgar do novo dia já se reflectia nas charcas de água, projectando, no largo em frente às garagens da carreira, um puzzle de céu e de nuvens ainda sem cores definidas. O ritmo dos passos abrandava à medida que a inclinação da ladeira de seixo se lhes opunha e o rapazito, franzino, ia ficando para trás. Ao ti’A’gusto Ferreiro já levava de atraso uma boa dúzia de metros. A avó parou para dar a salvação e o garoto lá recuperou uma meia dúzia de passitos, foram-lhe providenciais aqueles bons dias. Quando a avó se virou para trás, mal se lhe viam os olhos cor de turquesa. O lenço preto que escondia, permanentemente, os cabelos da avó e que marcava habitualmente o meio da testa, tinha escorregado e tapado as sobrancelhas, esmagado pelo peso da saca de farinha que transportava à cabeça e que lhe pendia horizontal aos ombros.

Aproximava-se o momento sempre mágico daquele percurso, a passagem pelo casarão. O seu pai chamava-lhe, por graça, de “Hotel Bragança”! E isto conferia-lhe, ainda mais, um clima de mistério, desejo, proibição e curiosidade que preenche o imaginário de qualquer miúdo de quatro, cinco, seis anos. O pequenote não sabia o que era um hotel, mas o pai disse-lhe que era muito grande quando, curioso, lhe perguntou o que significava aquela palavra, que não correspondia a nenhuma coisa vista por aquelas bandas! Uma pensão ele conhecia porque era por lá que vivia a maior parte do tempo. No meio de um rodopio de gente, de estórias, de vivências sempre renovadas de quem chega e não tem nada a perder, fazendo tudo para impressionar quem por lá está. De gente que, numa fugaz presença, arrisca tudo por um momento de glória! O pequenito adorava ouvir as estórias dos forasteiros e aventureiros que por ali pernoitavam e misturava-se com eles, mesmo contra a vontade da sua mãe. Imaginava, enquanto caminhava e admirava o casarão, como seriam essas estórias numa casa daquelas, com aquele tamanho todo, e com muito, mas muito, mais gente! Os seus olhitos por ali ficavam presos enquanto o seu corpo franzino se afastava. A sua imaginação voava para o seu interior, interdito, que lhe aguçava sempre mais e mais a sua curiosidade, empurrando-o contra o chão, esmagado pelo mistério que se escondia para lá daquele monstro de xisto e daquela enorme porta, tão frágil, feitas de ripas mal amanhadas.

- Onde vais?... Bons dias Maria! - Bons dias Piedade, vou ao forno... - Levas o menino?... Atão vais à pica? Dirigindo-se ao garoto. - Ninguém lh’a tira! Anda daí, olha mas é p´ra frente qu’inda cais...

O som da água da mangueira que jorrava sob pressão para dentro das pipas à porta da garagem dos Almeidas, foi o seu segundo despertar daquele dia, junto com os salpicos de água fresca que a brisa transportava contra os rostos e se transformavam em picadas de alfinete à medida que chocavam velozes e gelados contra a sua pele sensível e ainda quente de um sono próximo e confortável. As pipas, depois de lavadas, gargarejavam de água cristalina que cantava saltitante numa dança veloz pela calçada em direcção à rampa do casarão para depois, mansa, se lançar de novo, levada abaixo, estonteante, até à ribeira da Ponte. As pipas, eram movimentadas em correrias estridentes, a rolar sobre os seus aros metálicos, até serem meticulosamente empilhadas no interior do armazém. O dia amanhecia de vida, irrequieto, tanta era a energia que brotava dos corpos e das faces rosadas daqueles rapazes que nunca tinham frio:
- Bons dias ti’á Maria? - Bons dias. Retorquiu a avó. - Atão vais ô forno? Traz-me uma pica... gritou-lhe um dos rapazes de face rosada e de mangas de camisa arregaçadas que, num virote, já estava outra vez dentro do armazém num interminável vai-e-vem, a levar e trazer para lavar... a trazer e a levar para arrumar... pipas!

O projecto de rapaz não era de grandes falas, chegou-se para junto da sua avó, agarrou-se-lhe na saia, escondeu o rosto e continuou escondido de vergonha. Ainda houve tempo para um adeus:
- Até logo Piedade, vou p’ia riba... qu ‘inda vou cozer. - Inde com Deus! Retorquiu de seguida. Até logo!
No largo ainda correu para a porta da loja, mas deparou-se com a porta vermelha de ferrolho corrido, ainda não eram horas de abrir. A ti’á Gonçalvitas dava umas vassouradas à soleira da porta, curvada pela falta do cabo na vassoura de giestas. Deu os bons dias à avó e brincou com o garoto enquanto apertava o nó da vassoura para acertar as pontas e para não deixar escapar os ramos. Com a ti’á Gonçalvitas ele tinha mais confiança, porque era companhia frequente, da sua mãe, na loja ali ao lado, era-lhe familiar e sorriu-lhe.

À medida que entravam pelo povo, o dia ficava mais claro. A última etapa do caminho já se avistava na curva da Cruz da Rua. Era tempo de uma pausa e a avó atirou, num movimento controlado e rápido, a saca da farinha para o balcão do coberto da Amoreira, soltando, com o impulso, (h)um gemido seco. Ajeitou o lenço levando-o, de novo, até meio da testa, sentou-se no degrau fundeiro da escaleira e convidou o neto a fazer o mesmo. Os olhitos castanhos vivos já se tinham soltado e exploravam o que havia para lá daquele coberto, nunca se tinha atrevido a passar das escaleiras da ti’á Piedade do Ti’Moisés. A presença da avó inspirara-lhe a confiança suficiente para uma incursão mais afoita e avançou. Uns metros à frente, depois de contornar pela esquerda, perdeu a avó do seu campo visual e a penumbra provocada pelas casas que, parecia, se tocavam nos topos, faziam o beco ainda mais estreito e mal iluminado, escurecendo à medida que ia avançando e que a respiração se lhe sustinha. Sentiu um nó na garganta e num ápice, voltou-se, correu e atirou-se para o colo da avó com coração aos saltos e a imaginação numa controvérsia. Só quando sentiu o calor das mãos da avó a acariciar-lhe os novelos de cabelo, voltou a sentir-se tranquilo e seguro e respirou. Passaram alguns anos até que se atrevesse, sozinho, a fazer aquele caminho que levava à casa do ti’Man’el Maria e da ti’á Rosa Minhota! Hoje ainda se ri, quando lá passa e se lembra!

Upa!... e sacudiu os ombros, deslocando ligeiramente a saca na cabeça para compor o carrego. O lenço voltou, de novo, a cobri-lhe os olhos acima das sobrancelhas. – Anda daí! Exclamou para o garoto. E lá continuaram. Ainda não tinham chegado à curva da Cruz da Rua e já o bater da água no fundo de chapa dos regadores se ouvia cada vez mais próximo. Conseguia contar quantos regadores iam enchendo, só pelo cantar diferente da água quando ficavam cheios! Tudo servia para mais uma brincadeira enquanto caminhava, ladeira acima, de pernitas já trémulas! Algumas raparigas conversavam encostadas à fonte, aguardando a vez, com cântaros, jarros e regadores perfilados. Era hora de abastecer a cantareira de água, de repor a água nos lavatórios e de providenciar o precioso liquido para as lavagens e para a criação. Mais uma salva de salvação. O ti’Vitor Pouc’chinho já os avistara e mal lhe passaram em frente à porta do talho, deu-lhes os bons dias perguntando logo de seguida:
- Maria, é preciso alguma “coisinha”?... naquele timbre de voz único. – Só sábado... respondeu a avó.

E, p’ia riba... agora todo o fôlego era pouco até à Eira. Aproveitando as escaleiras de fronte ao ti’Barata, a caminhada encurtava uns bons e folgados metros. Um pouco mais e estavam à porta do forno.

A avó, assim que passou a soleira da porta entreaberta, num ápice, aliviou do peso da saca e deu a salvação a todas as mulheres, que reponderam quase em uníssono. Sobressaiu a voz da ti’á Faustina dando as indicações próprias de quem gere um forno procurando compatibilizar todos os interesses com a equidade e com a simplicidade de quem sabe o que faz e porque o faz. Ainda procurava, junto à porta, habituar os meus olhos àquela penumbra do espaço interior quando a voz da ti’á Faustina se ouviu de novo:
- Entra filho, a tua pica já está no forno, é muito ásadinha, há-des de ver, entra. E, enquanto, terminava a frase, agarrou-o no braço e puxou-o para o interior.
Um coro de vozes rodeou a sua presença e tornou-o no centro de todas as atenções.
– Maria, aí de grande qu’ele está!... – De grave!... – No trouxes-te a tua mãe? – Gostas de pica?... A ti’Faustina, sentido o embaraço do garoto perante aquele vulcão de atenção, que ele só pressentia, pois os seus olhos ainda não se tinham acostumado à penumbra do espaço interior do forno, pegou-lhe na mão e conduziu-o, com o carinho que sempre lhe dispensou, até à bancada da amassadeira onde a avó já preparava a farinha. Da saia da ti’Faustina agarrou-se, com quantos dedos tinha, à saia da avó, que sentindo o que se passava o sossegou da melhor forma possível. - Já vais comer a tua pica! A única coisa que justificava, para ele, aquela longa caminhada e uma exposição tão grande à multidão de vultos negros que circulavam pelo espaço do forno e que ainda não conseguia definir, turvado pela penumbra e pelo pó de farinha que invadia até às entranhas todos os orifícios.

Rapidamente o silêncio das vozes deu lugar ao bater seco, abafado e sincopado das mãos na massa, à vez, entrecortado por estridentes palmadas, testando a consistência da mistura. Os olhitos foram-se adaptando e o retomar da azafama já lhe permitia uma incursão mais detalhada, aqui e ali, pelas diferentes tarefas que eram meticulosamente efectuadas e organizadas. Não havia lugar para falhas, todos os detalhes contam e eram verificados, nem o sinal da cruz na massa pronta para fintar, por alguma vez que fosse, prescindia da ladainha que acompanhava o gesto que marcava a cruz. Só depois, a massa, era cuidadosamente acondicionada e acomodada, até poder ir para o forno. Todos os movimentos, todas as sequências, todas as orações e o silêncio eram condições para o sucesso da fornada. Por momentos, entre sinais da cruz, ladainhas, benzedelas, o respeito pelo ritual do pão faz lembrar outros rituais que, se não estiverem longe da vida, lhe estão ligados. E de repente:

- Toma filho!... Virou a cabecita num ápice com os olhos a brilhar, fixando aquela broa pequena, pousada na alvura de um pano de linho que preenchia e tapava, por completo, as mãos da ti’Faustina. Com a delicadeza de quem trata de um filho acabado de nascer, deu meia volta ao pano que lhe pendia das mãos, depois outra meia volta, do outro lado, deixando as mãos a descoberto e estendendo-as em direcção ao garoto, disse:
- Ainda está quente, não te escaldes... toma é a tua. Ainda deu um jeito ao pano, que já estava nas mãos do garoto, com mais uma dobra, para que a ponta da pica ficasse mais visível, não a atabafando por completo. A pica ainda fumegava e tinha mais um pormenor, foi feita para ele pela ti’Faustina, logo numa das primeiras fornadas. Eram as únicas picas de que ele gostava realmente! Porquê? Nunca o soube! Mas cada vez que passava pela Eira, durante muitos anos, quando a ti’Faustina estava sentada no balcão, à soleira da porta, beijava-a e segredava-lhe ao ouvido qualquer coisa a que ela respondia, sempre, sorrindo:
- Ainda não te esqueces-te filho?!!!...