domingo, 25 de maio de 2008

José Júnior, um erro de "Casting"? Quem é o Zézito? (Cont...)


Que pode uma criatura senão,
entre outras criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?
Carlos Drummond de Andrade


Na Presa das Dornas, no Vale do Muro, enchendo a barriga de amoras silvestres, de fruta da época, com frio nos pés, quando inverno chegava, com uma laranja, apertada nas mãos, dada de presente de Natal, que se ia guardando, orgulhosamente, até não lhe resistir mais. Era um garoto igual a tantos! Tinha, no entanto, uma coisa que o tornava muito especial, era o único tesouro do José Júnior.

Não seria muito diferente da maioria dos meninos de Cebola, com uma particularidade, a sua orfandade precoce de mãe. Mas tinha o pai, que ao seu jeito, meio ataviado, o tratava e protegia e o amava, o melhor que podia e sabia.

Nunca conheci o Zézito, mas conheci outros Zés, que em meados dos anos 60, até começar o fenómeno da imigração em S. Jorge, fosse Verão ou Inverno, usavam sempre a mesma sola, para palmilhar os seixos redondos que cobriam as principais ruas, a sola dos próprios pés. Neste preparo, independentemente da época do ano, abordavam algumas casas mais abastadas na esperança de lhes darem (...) “uma côdea, nem que seja rapadinha, rapadinha...” para aliviar a fome. Ainda me soa esta frase algumas vezes em que me ponho a pensar nisto.

Passavam os dias, as semanas, os anos, vinha o jogo do prego, do pião, do berlinde, com bolotas de cedro, os carros de bois, feitos de canocas de milho, que se arranjavam junto aos palheiros, nos lameiros por baixo dos Torgais e do Porto. O meu Zézito, assim, ia crescendo, uns dias melhor que outros, mas era uma criança sadia e alegre.

Havia na nossa aldeia dias diferentes, o Domingo de Casamento, era dia de festa! Para a família, para os convivas, claro. Mas era sobretudo dia de festa para a canalha, que não tinha lugar à mesa, à fartura que sempre caracterizou estas festas na nossa aldeia. Era dia de arroz de fressura com broa. Depois do cortejo chegar da Igreja, os convivas dirigiam-se, conforme o lado a pertenciam, para a casa da noiva ou para a casa do noivo, onde separadamente decorriam as festas. Cotovelada daqui, empurrão dali lá se acomodavam, por tudo que era canto e loja da casa, normalmente, com divisões exíguas. Ao almoço, por regra, os noivos comiam em casa dos pais da noiva, o jantar era em casa dos pais do noivo.

Mas havia uma tradição (não sei se ainda se mantém) que se destinava à tal canalha de que já vos falei. Quer em casa do noivo, quer em casa da noiva. Na porta das traseiras, ou na porta que dava directamente para a cozinha, fazia-se um ajuntamento de garotos, que esperavam, endiabrados, pela sua vez para receber uma fatia (farta) de broa com arroz de fressura por cima, a escorrer molho por todo o lado. Cada um o aparava como podia e os dedos ficavam sequinhos de tanto os lamber.

Depois era vê-los trocar de posição. Os que já estavam “memorizados” pelas cozinheiras de uma das casas e já não dava para mais uma fatia, saltavam muros, quintais, hortas, ruas e becos, bebiam de um trago a água da fonte e corriam, corriam... saltavam até à outra casa, às vezes na outra extremidade da aldeia. Sim, porque o amor não escolhe lugar, é um destino como diz Drummond. O Zézito, não tenho dúvida, era um deles, misturado com todos.

(Esta tradição, do arroz de fressura com broa, para além de se constituir como uma magnifica forma de compensação de profundo cariz sociológico, que revela a generosidade e sensibilidade das gentes da minha aldeia para com os menos favorecidos, é também um momento admirável de partilha! E, agora tenho que o confessar aqui, era também o meu prato preferido das Bodas! Muitas vezes, depois de esperar na fila, pela minha fatia de arroz de fressura - que ainda hoje me deixa água na boca só de a recordar - era desmascarado, “esse é da Boda!” - e era expulso e entregue à guarda da minha mãe!).

Talvez o Zézito, como muitos garotos da sua idade, nunca tenham visto o mar, esse horizonte, deslumbrante, sem fim. A terra que o viu chegar, foi a mesma terra que o engoliu no momento da partida. Mas sentiu-se, com certeza, senhor e dono das estrelas, que preenchiam todo universo acima de si. Bastava-lhe olhar o céu e o sonho nunca mais terminava, qual Principezinho de Saint-Exupery. Já algum dia viram estrelas mais bonitas do que as da nossa aldeia?

Da próxima vez que olharem para o céu estrelado, na nossa aldeia, o Zézito é uma delas.

Tentem descobri-lo!

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